5. O coração do pregador:

(Com base em: Carlo Maria MARTINI. El presbítero como comunicador.
Madrid: PPC Editorial y distribuidora, 1996, 199 p.)

- Com esta palavra não nos referimos ao que na retórica antiga se chamava “moção dos afetos”, isto é, o ponto mais alto do sermão, o seu cume, quando se chega à espressão mais cordial e intensa da exortação. Referimo-nos, antes, a uma qualidade da homilia, aquela vibração sutil que de algum modo empapa cada uma das palavras que se pronunciam em nome do Senhor (os Carismáticos falam de unção).

- Santo Agostinho fala de “Cor ad cor loquitur” (“O coração fala ao coração”) referindo-se à relação do homem com Deus, mas estas palavras podem aplicar-se também ao homem de Deus que fala a outro homem amado por Deus. Tal expressão, para Agostinho, significa que a comunicação sai do interior de uma pessoa e busca o interior de uma outra pessoa (tema fundamental para o bispo de Hipona).

- Há ocasiões, por exemplo, em que assistindo a uma aula, conferência ou homilia, para não distrair-nos tomamos um papel e fazemos anotações. Mas, em dado momento, percebemos que espontaneamente começamos a escutar com interesse e já não é necessário esforço. Certamente isso acontece porque o que se diz passa a dizer algo a mim, as palavras me atingem e chegam ao meu coração como uma mensagem. Minha atenção adquire qualidade. Esse é o “cor ad cor loquitur”.

- Numa maravilhosa passagem das Confissões, Agostinho expressa o que seja esta comunicação de coração a coração. Trata-se do famoso “extase de Hóstia”: numa das últimas horas da vida de sua mãe, Agostinho conversa com ela, apoiados na janela de sua casa em Hóstia; contemplavam o mar e falavam entre si. Trata-se, portanto, de uma comunicação espiritual profunda, e não de um sermão. Diz ele: “Falávamos a sós, muito docemente, ‘esquecendo do passado e ocupando-nos do futuro’ (Fl 3,13).Na presença da Verdade, que sois Vós, alvitrávamos qual seria a vida eterna dos santos, ‘que nunca os olhos viram, o ouvido ouviu, nem o coração do homem imaginou’ (1Cor 2,9). Sim, os lábios do nosso coração abriam-se ansiosos para a vossa corrente celeste ‘da vossa fonte, a fonte da Vida’ (Sl 30,10), que está em Vós, para que, aspergidos segundo a nossa capacidade, pudéssemos de algum modo pensar num assunto tão transcendente”.

* Comunicação de coração a coração é aquela busca da verdade, em que a boca do coração se abre avidamente à corrente celeste da fonte da água divina; é a presença do coração de Deus, que entra na comunicação e estabelece o vínculo vivo entre as pessoas.

- Na Carta Apostólica “Augustinum Hipponensem”, o papa João Paulo II destaca a importância da vida interior em sua filosofia e teologia. Ele diz: “No homem interior existe, além da Verdade, a misteriosacapacidade de amar, que, como se fosse um peso, lhe empurra para fora de si mesmo e o leva em direção aos outros e sobretudo para Deus”.

* A metáfora do peso nos faz comprender que a comunicação de interior a interior tem umaespontaneidade própria, de maneira que o único de devemos fazer é deixar que saia, que flua, que aja.

* Comunicação de coração a coração é aquela comunicação que, desde a intimidade e escutando o coração de Deus, cede ao peso deste amor que me leva instintivamente a expressar-me com os outros e com o próprio Deus.

- Também em Paulo encontramos algumas expressões fortes dessa “comunicação de coração a coração”. Na verdade, as cartas de Paulo possuem palavras de tanto vigor precisamente porque elas nascem de uma pessoa que se empenhava por inteiro em tudo o que dizia e fazia, com uma riqueza espiritual profunda e comovedora. Por isso, suas palavras são cheias de força, de liberdade interior e de penetração.

- Na Segunda Carta aos Coríntios encontram-se algumas palavras cheias de afeto, vindas do pronfundo do coração. O contexto é já conhecido: Paulo se sente acusado; há pessoas na comunidade que falam mal dele porque não se sentem atendidas, consideram-no covarde e preguiçoso, até desconfiam de seu ministério.

- Paulo diz: “Nós vos falamos com toda liberdade, ó coríntios; o nosso coração se dilatou. Não é estreito o lugar que ocupais em nós, mas é em vossos corações que estais na estreiteza. Pagai-nos com igual retribuição; falo-vos como a filhos: dilatai também os vossos corações!” (2Cor 6,11-13).

* A palavra “coração” é a palavra chave dessa confidência paulina. O texto grego diz literalmente: “a nossa boca se abriu para vocês e nosso coração se abriu de par em par para vocês”. Lembramo-nos aqui das palavras do Salmo 118,32: “Correrei pelo caminho do Senhor, quando me tiveres dilatado o coração”. Paulo quer dizer que não ocultou nada no coração, falou tudo o que tinha a dizer.

* Paulo tem o coração tranquilo; acusa sim a mesquinhez dos Coríntios que não o interpretam com bom coração. É uma acusação forte, mas cheia de ternura.

* Paulo dialoga com eles como de Pai a filhos. Isso é precisamente a caridade: habitar no outro como em sua própria casa. No Capítulo 7 da Carta se volta à imagem de habitar no outro: “Acolhei-nos em vossos corações. A ninguém causamos injúria, a ninguém pervertemos, a ninguém exploramos” (2Cor 7,2). Paulo parece implorar-lhe que lhe abram lugar, que o acolham, o entendam, deixando de lado as desconfianças, os ressentimentos, as amarguras, as frustrações. Para isso, se defende, dizendo que é caluniado, pois a ninguém explorou...

* Continua: “Não é para vos condenar que o digo, pois já o afirmei: estais em nossos corações para a vida e para a morte” (2Cor 7,3). A comunicação na Palavra fez uma comunicação de vida que não se acaba nem com a morte. Jesus expressa a mesma idéia: “Aquele que escuta a minha palavra e a põe em prática, este é meu irmão, minha irmã, meu pai e minha mãe” (provérbio muçulmano diz: a ciência irmana aqueles que a praticam).

* Finaliza dizendo: “Grande é a minha confiança em vós; de vós muito me ufano. Estou cheio de consolo, transbordo de alegria em toda a nossa tribulação” (2Cor 7,4).

- Outro exemplo de “comunicação de coração a coração” em Paulo vem da sua Comunidade mais querida, Filipos. Nos Atos dos Apóstolos se relata a origem histórica desta relação de carinho: Paulo chega cheio de temor a um continente novo, a Europa, e a uma nova cidade. Está cheio de receio, como é compreensível; não sabe se será bem acolhido. Então se diz nos Atos dos Apóstolos: “Uma delas, chamada Lídia, negociante de púrpura da cidade de Tiatira, e adoradora de Deus, escutava-nos. O Senhor lhe abrira o coração, para que ela atendesse ao que Paulo dizia. Tendo sido batizada, ela e os de sua casa, fez-nos este pedido: "Se me considerais fiel ao Senhor, vinde hospedar-vos em minha casa". E forçou-nos a aceitar” (At 16,14-15).

* Percebe-se aqui a aparição de um terceiro personagem, como em Agostinho. É Deus quem abre os corações. E, quando ele abre os corações, abre também as portas para uma comunicação familiar, para uma hospitalidade cordial.

- Vemos, assim, distintos aspectos de uma comunicação na fé, uma comunicação a partir do coração, ao coração, com o coração.

- Meditemos mais profundamente sobre estes 3 sentidos:

a) Desde o coração:

- A pregação cristã nasce da vida interior, do meu convencimento profundo, e também dos meusmaiores sofrimentos.

- Isso significa que é necessário preparação. Sem isso, a pregação costuma ser superficial, movida pelas impressões de momento. É verdade que às vezes, quando as circunstâncias externas criam em nós uma atmosfera de emoção, ou o auditório nos estimula, ou ainda quando dominamos o assunto(preparação remota), a pregação resulta bem. Mas, o normal é que a pregação deve ser bem preparada.

- Para isso, é necessário seguir os passos da Lectio Divina. Muitas vezes nos equivocamos, quando temos pela frente uma pregação a ser feita, colocando-nos como primeira pergunta: “o que direi sobre este tema, sobre esta página do Evangelho?” (funcionalismo na pregação).

* A primeira pergunta a ser feita é: o que diz a Palavra de Deus: lê-la com atenção, como se fosse a primeira vez, sublinhando, saboreando, ajudando-se com um comentário bíblico.

* A segunda é: o que me diz a mim? Me questiona, me incomoda, me toca, não me toca, parece não interessar-me? Quais seriam os prejuizos que me impedem acolhê-la? De fato, se a palavra não me interessa, tampouco interessará ao meu auditório.

* A terceira pergunta, sim, será: O que vou dizer sobre esta palavra, já filtrada em meu interior? É destes passos que vem a segurança e alegria do pregador. A alegria de haver encontrado um manancial de uma palavra, ou ser tocado por um detalhe que nos faz ver o conjunto de uma forma nova.

b) O coração:

- De fato, uma homilia, um livro ou um texto qualquer tem sempre um “coração”, uma idéia central, que é realmente o que o autor quer dizer.

- Vale a pena perguntar-se sempre pelo coração de um livro, de uma homilia, de um texto bíblico. Para isso, vale procurar as palavras chaves, sublinhar os verbos, os adjetivos, os advérbios; assim, emerge pouco a pouco as palavras que mais se repetem e que servem de referência para as demais.

- Também a homilia tem que ter um coração. Do contrário, o pregador divaga, as frases saem desconexas, postas umas juntas das outras sem que se entenda o que verdadeiramente se quer comunicar.

* Martini conta que seu professor de retórica mandava aos seminaristas escreverem as homilias, depois aprendê-las de cor e repeti-las. Se elas durassem meia-hora, deveriam ser reduzidas a 15 minutos e depois a dois minutos. Assim se chegava ao coração da homilia. Pode-se comunicar este coração com comparações, exemplos, prólogos, mas o coração não pode faltar (perguntar-se: qual é a essência do que vc quis dizer? Herman usa muito comparações, eu uso muito exemplos).

* Na conversa de Agostinho e Mônica e na cena de Filipos, o coração da conversa era o terceiro elemento, Deus. É por isso que a pregação trata da Palavra de Deus. Ele habita em nosso coração como “Mestre interior”, como Espírito do Ressuscitado. Assim, antes de tudo, o pregador deve ser um homem espiritual, isto é, alguém que vive no Espírito, que habita no Coração de Cristo, que se deixa habitar pelo Senhor.

c) Ao coração:- A pregação se dirige à pessoa, naquilo que ela vive em seu interior, ou pretende viver: impulsos para Deus, decaimentos internos, angústias, trevas, medos, etc.

- Essa é a doutrina agostiniana sobre o homem interior: no seu interior se encontra a Verdade, e esta lhe permite uma comunicação universal.

- A mesma realidade se encontra no Budismo: “Busca a natureza do Buda: está em ti como em todos, e com elas comunicas com toda a humanidade, portanto, com a compaixão, a abertura, a ternura para com a vida, que procede da unidade desta natureza”.

- Martini conta de sua experiência de palestras na Indonésia: falando em um idioma que não era o seu, o inglês, para um público que tampouco tinha no inglês o seu idioma materno, no entanto, sentiu uma profunda comunhão de afetos. Era como se o coração se derretesse, se dilatasse, numa profunda comunicação de interior a interior. (falar do Sérgio Silva).

- “Se atinjo a minha vida interior, atinjo o lugar da comunhão com os outros, onde convergimos todos, e assim, na profundidade do meu interior, atinjo o universo inteiro”.

- Ou seja, a vida interior é o caminho para a solução pastoral e prática para o gravíssimo problema dos idiomas e das culturas.

- Como comunicar entre si mundos culturais tão distantes? Como estabelecer a unidade e a catolicidade da Igreja? (Martini conta de um padre sinodal, que comentava: “Verás que, quando começarmos a conversar sobre os problemas de hoje, os europeus falarão da indiferença religiosa, os latino-americanos da teologia da libertação e dos pobres, os africanos das culturas tradicionais e os asiáticos das grandes religiões”.

* Entrando em meu interior, descobrindo minha vida interior e comunicando-a, posso ter a esperança de encontrar uma verdadeira comunicação. Pois a minha vida interior, em suas penas, sofrimentos e desejos, é idêntica à de todos os homens, sem exceção.

* Paulo VI era assim. Em seus escritos não se encontram conceitos préfabricados, mas ele toma de seu interior os sofrimentos, as inquietudes profundas que vivia, e purificando-as pelo Espírito, sentia que participava dos sofrimentos e inquietudes dos homens de seu tempo. E assim se conectava com eles e chegava aos seus corações.