3. O equilíbrio do pregador:

(Com base em: Carlo Maria MARTINI. El presbítero como comunicador.Madrid: PPC Editorial y distribuidora, 1996, 199 p.)

- Falamos aqui de equilíbrio no tríplice sentido:

- Equilibrio objetivo: é a justa dosificação dos temas sobre os quais se há de falar, na linha do que foi dito sobre a dosificação entre os temas kerigmáticos, existenciais e doutrinais, ou ainda como se expressa na volta de Madeleine Delbrel para a Escritura a fim de ver se o Evangelho ressoava em sua totalidade em sua palavra.

- Equilíbrio dinâmico e pedagógico: é a dosificação das coisas de acordo com a sua oportunidade, sabendo que há momentos distintos na pedagogia da fé.

- Equilíbrio de misericórdia: aquele que funde suas raízes mais profundas no coração de Jesus,comunicando de maneira a atingir com misericórdia aqueles a quem a palavra é dirigida. Por isso a Palavra de Jesus era fonte de paz.

- Trataremos aqui e agora do segundo sentido, o equilíbrio dinâmico e pedagógico, aquela capacidade de atuar em cada caso, dando a cada um o remédio e alimento que precisa, segundo a idade, o tempo e o nível espiritual em que se encontra. Na Bíblia há alguns exemplos claros desse equilibrio.

- O caso de Naaman, o Sírio (2Rs 5): chefe do exército do rei de Aram, Naaman é um personagem importante, mas está leproso. Ouve falar pela empregada do profeta de Samaria, e pede ao rei de Aram que escreva ao rei de Israel. Eliseu intervém e recebe a Naaman que manda-lhe lavar-se sete vezes no rio Jordão. A lepra desaparece e Naaman volta para agradecer a Eliseu. Oferece-lhe presentes, mas ele não aceita. Pede, então, que o deixe levar terra de Israel para adorar ao Deus de Israel em sua própria terra.

* Trata-se de uma verdadeira conversão ao Deus de Israel, e Eliseu se alegra por isso. Mas Naaman entra numa apresenta a Eliseu a seguinte questão complicada:“Que Iahweh perdoe, porém, a teu servo o seguinte: quando meu senhor vai ao templo de Remon para adorar, ele se apóia sobre meu braço e também me prostro no templo de Remon junto com ele; digne-se Iahweh perdoar esta ação a seu servo!" Eliseu lhe respondeu: ‘Vai em paz’” (2Rs 5,18-19): Eliseu compreende que o homem já deu um grande passo, se dá conta de seu processo, mas vê que as circunstâncias concretas de sua vida não lhe permitem dar o passo seguinte. O preceito é absoluto, não pode ser graduado, mas a pessoa segue o seu caminho e vive a plenitude do preceito como pode no momento concreto de seu caminhar.

- O relato de Paulo em Listra (At 14,13ss): Paulo está pregando em Listra; o povo se entusiasma e ao ver o paralítico curado pretende fazer um sacrifício; chega inclusive um sacerdote de Zeus trazendo touros adornados para o sacríficio. Paulo e Barnabé rasgam as vestes e em meio ao povo dizem: “"Amigos, que estais fazendo? Nós também somos seres humanos, sujeitos aos mesmos sofrimentos que vós, mas vos anunciamos a Boa Nova da conversão para o Deus vivo, deixando todas essas coisas vãs! Foi ele que fez o céu, a terra, o mar, e tudo o que neles existe. Ele permitiu, nas gerações passadas, que todas as nações seguissem os próprios caminhos. No entanto, não deixou de dar testemunho de si mesmo fazendo o bem, do céu enviando-vos chuvas e estações frutíferas, saciando de alimento e alegria os vossos corações" (At 14,15-17) .

* Causa-nos surpresa que Paulo pare aqui o seu discurso e não fale de Jesus Cristo morto e ressuscitado e da conversão ao Deus de Jesus Cristo. Os seus ouvintes só podiam chegar até aqui. Paulo tenta entrar em seu mundo: as chuvas, as estações ricas em frutos, os alimentos que alegram o coração.

- A postergação da visita de Paulo a Corinto (2Cor 1,23-24): Paulo explica que havia decidido ir a Corinto, mas que depois mudou de itinerário não por acaso, mas por um motivo sério: “Quanto a mim, invoco a Deus como testemunha da minha vida: foi para vos poupar que não voltei a Corinto. Não tencionamos dominar a vossa fé, mas colaboramos para que tenhais alegria; é pela fé que estais firmes” (2Cor 1,23-24). Paulo posterga sua ida a Corinto porque sua ida poderia ter provocado uma confrontação desagradável, para a qual eles não estavam preparados.

* Noutro lugar Paulo explica isso com mais clareza: “Quanto a mim, irmãos, não vos pude falar como a homens espirituais, mas tão-somente como a homens carnais, como a crianças em Cristo. Dei-vos a beber leite, não alimento sólido, pois não o podíeis suportar” (1Cor 3,1-2). Paulo não diminui nem oculta a verdade aos Coríntios, apenas a dosa, oferece o alimento completo que pode ser digerido (já que para a criança o leite é um alimento completo). O equilíbrio dinâmico e pedagógico consiste precisamente nisso: dosar a totalidade de verdade administrando só a quantidade que pode ser digerida.

- Como saber dosar a medida certa da verdade revelada a ser oferecida aos ouvintes?

- Primeiro, é necessário conhecer a realidade da assembléia e o nível de sua consciência (de fé e moral): essa é uma realidade em movimento, que ora cresce ora mingua. Só isso pode explicar a “ignorância invencível”: escutamos homilias, tomamos consciência de nossos deveres, mas eles não entram em nossa vida como obrigação moral absoluta porque o ambiente em que nos movemos é desfavorável.

- Depois, é necessário ter claro o objetivo: esforçar-nos por contemplá-lo cada vez mais mediante a meditação das Escrituras, a escuta da Tradição da Igreja, a leitura e reflexão sobre as Encíclicas Papais, etc.

- Fazer com que os ouvintes entrevejam essa meta. Criar condições que passem da “ignorância invencível” à “ignorância vencível” (MEU: passar da consciência ao convencimento). A melhor forma de fazer isso é através da linguagem parabólica ou alusiva, que serve para fazer entrever o final desde a realidade atual da qual se mira. Pode-se ver a verdade em sua essência e ao mesmo tempo respeitar o nível ainda confuso e incerto daquele que escuta (falar de Jesus e do Pe. Herman, de Antonny de Melo e Carlos Vallés).

* A parábola não é a apresentação doutrinal da verdade, mas a alusão misteriosa a um “plus” a que a pessoa é chamada a buscar, sem que fique desanimada por saber que ainda está aquém dele (MEU: ela se entusiasma mais com a meta vislumbrada que lamenta pela realidade desbotada em que está).

- Ajudar a caminhar para a meta com passos realistas: ajudar a dar o passo seguinte, um após outro, de maneira que se ponha a caminho da meta e se experimente e saboreie cada vez mais a força, a profundidade e a exclusividade da experiência de Deus, o que levará a pessoa a acatar mais inclusive as conseqüencias morais e ascéticas necessárias no momento.

- Uma palavrinha sobre o terceiro sentido, o equilíbrio misericordioso. Trata-se de um passo além do processo paulatino de que acabamos de falar, pois é a compreensão de um caso concreto em sua relação com a lei genérica, que pode levar às vezes inclusive a quebrar a lei; é a compreensão de que a lei, os grandes ideais, tem que adaptar-se aos casos particulares, às circunstâncias pessoais.

- O termo grego para essa realidade é “epiéikeia”, que a Vulgata traduz por “modéstia”, e serviu de inspiração para as regras da ascética cristã. São Paulo usa este termo em Fp 4,5, quando exorta os cristãos a viverem alegres no Senhor (“Que todos vos conheçam pela vossa bondade”).

- O mesmo Paulo vive uma aplicação desta lei, quando, depois de explicar o motivo porque postergou sua visita a Corinto, fala de alguém que o ofendeu e merecia o rigor do castigo, e diz: “Se alguém causou tristeza, não foi a mim, mas em certa medida (não exageremos) a todos vós. Para tal homem,basta a censura infligida pela maioria. Eis por que, muito ao contrário, perdoai-lhe e consolai-o, a fim de que não seja absorvido por tristeza excessiva. Sendo assim, exorto-vos a que deis provas de amor para com ele” (2Cor 2,5-8).

* Paulo convida à benignidade, à paciência, à capacidade de perdão. Diz a seguir: “Àquele a quem perdoais eu perdôo! Se perdoei — na medida em que tinha de perdoar —, eu o fiz em vosso favor, na plena presença de Cristo, a fim de que não sejamos iludidos por Satanás. Pois não ignoramos as intenções dele” (2Cor 2,10-11). É próprio de Satanás endurecer o coração, torná-lo rígido com o pretexto da lei, não ser capaz de entender as circunstâncias individuais, escudando-se às vezes num zelo mal entendido (Gabriela: Dorotéia e Lindinalva). O diabo tende a dividir pelo ódio, pelos conflitos, as brigas e também pela dureza.

- Outro exemplo de aplicação dessa lei é a perícope da mulher adúltera (Jo 8,1-11). A maioria dos manuscritos não a cita, certamente porque traz uma realidade difícil de ser aceita, parece colocar em pé de igualdade o bem e o mal. Interpelado sobre a aplicação da lei de Moisés num caso concreto, Jesus não se declara contra a lei, mas vai além, fazendo com que os interpeladores se dessem conta da complexa tortuosidade do coração humano.

* Essa não é uma lição para iniciantes, para adolescentes qu precisam ser educados na seriedade do compromisso, mas é antes uma lição para o cristão maduro, para aquele que conheceu de alguma forma o misericordioso coração de Jesus, que tem delicadezas que não quadram bem com a lógica da lei.

- Não se trata de passar por cima de tudo sem exigir, nem de exigir com dureza. Ambas as coisas podem acontecer sem que nos envolvamos com o sofrimento de quem vive a situação. O fundamental, seja qual for a decisão a que eu chegar, é que a pessoa se dê conta de que me sinto envolvido em sua situação, em que sofro com ela.

- As condições necessárias para a aplicação da “epeiekéia” são: a capacidade de aceitar-nos a nós mesmos (MEU: minhas dificuldades com situações de grávidas, o bispo e o assunto da castidade do padre), a humildade, a oração, a desconfiança de si mesmo, a confiança posta só em Deus, a consulta a pessoas mais experientes, entrar com misericórdia no sofrimento dos outros.

* Muitas vezes temos uma excessiva rigidez moral ou doutrinal porque não sabemos aceitar nossa própria humanidade, nossa pobreza ou fragilidade, nos rebelamos contra nós mesmos. Quase como compensação, nos tornamos duros e os demais o notam.