O natal dos homens sem pátria

COLABORAÇÃO – José Ferreira (Tomate), da Missão Nova Aliança em São Paulo (Bairro do Limão)
FONTE - www.estadao.com.br

Em abrigo paulistano, eles celebraram a data longe de suas origens, de sua cultura e de seus parentes.

(Filipe Vilicic e Edison Veiga)

Na lembrança de fim de ano que o serra-leonês Alimamy Mohames, de 25 anos, carrega, está uma grande festa nas ruas da cidade de Masiaka. "Nesta época, é só alegria por lá", conta, com olhar nostálgico. "Acaba o campeonato nacional de futebol, todos celebram e, no dia do Natal, há um enorme show para a população. Apesar de ser muçulmano, gosto de dar presentes e beber com meus colegas."

O último dia 25 de dezembro, porém, foi diferente para ele. Mohames não pôde festejar com amigos e parentes. No Brasil, desde 19 de outubro, ele passou a data no Paraná, com refugiados de Gana e Senegal, em busca de emprego. Mohames conta que fugiu de seu país. "Para não morrer", explica. O Estado esteve com ele no último dia 22, na Casa do Migrante, instituição mantida pela Igreja Católica no centro de São Paulo. Mohames já arrumava as malas para ir ao Paraná.

BILHETES AMEAÇADORES

Atualmente moram 80 homens e 20 mulheres nos 30 quartos da Casa do Migrante. Na maioria, são indivíduos que buscaram abrigo no Brasil porque viraram alvo de perseguições raciais, sociais ou religiosas em sua terra. Outros sofreram grave violação de direitos humanos. Por serem atacados, estuprados, rechaçados, jurados de morte e ofendidos em seus países, são tidos como refugiados pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur).

A história de Mohames é um exemplo disso. Nos anos 90, quando uma guerra civil tomou o país africano, sua família não aceitou se juntar aos rebeldes que derrubaram o presidente. Em 1997, mesmo ano em que aconteceu o golpe, soldados mataram seu pai e sua mãe. "Os rebelados atacaram minha casa no dia do meu aniversário", recorda, com lágrimas. "Olha o que fizeram", completa, mostrando a foto de sua mãe com a cabeça degolada. "Eles mandavam cópias dessa imagem para mim, com um bilhete que dizia: "Você teve sorte".

Sorte mesmo. Mohames só escapou do massacre porque naquela noite havia ido dormir na casa de um amigo. Ele tinha acabado de completar 12 anos. Após ficar órfão, foi criado por um tio e dois irmãos mais velhos (um deles não tem os braços, decepados durante a guerra). "Mesmo depois que as tropas de paz entraram em Serra Leoa e encerraram o conflito, continuaram a me perseguir." Mohames conta, expressando certo orgulho, que os rebeldes o odiavam por seu pai ter sido um conhecido opositor deles e, principalmente, pelo sucesso que tinha em sua cidade. "Sou professor, formado em Lingüística e estudante de Sociologia, falo oito línguas e fui eleito o segundo melhor aluno de meu país. Isso os irritava."

As ameaças se tornaram cada vez mais freqüentes. "Eu encontrava bilhetes ameaçadores em cima de minha cama quando chegava em casa", diz. Em agosto, um amigo de seu pai lhe deu passagens de avião para vir ao Brasil e impôs: "Vá prolongar sua vida." Mohames viajou primeiro para o Senegal, onde esperou seu vôo para cá. Chegou há cerca de três meses em São Paulo e, com apenas US$ 100 no bolso, foi morar na Casa do Migrante, de onde saiu, com outros refugiados, com a esperança de conseguir um emprego num frigorífero paranaense.

NATAL

O serra-leonês é um dos mais de 4,2 mil refugiados no Brasil que passarão as festas de fim de ano longe de seus países. "Nem comemorarei, porque não tenho felicidade para isso", afirma. "Estou em uma terra onde não sei me comunicar, porque não falo português, não consigo emprego, não posso compartilhar os conhecimentos que adquiri na faculdade e vivo sem meus irmãos e amigos."

Nem todos os que enfrentam o mesmo que Mohames vêem a época com tristeza. O sudanês Yvon Paka, que chegou à Casa do Migrante em 3 de outubro, é só alegria. Sorridente, ele afirma que é muito feliz comemorando o Natal ao lado de seus colegas de quarto. "Amo o Brasil", diz, em um português ruim e carregado de sotaque. "Aqui não tem criança morta na rua e posso andar sem medo." Cristão, Paka era perseguido por muçulmanos, religião predominante no Sudão. "Eles xingam, estupram, batem e matam quem não é igual a eles", relata. "Odeio-os", afirma, enquanto ajuda o amigo Mohames, um muçulmano, a arrumar as malas. "Mas os que estão aqui na casa são legais", frisa.

Paka celebrou a virada para o dia 25 de dezembro em uma ceia com os colegas da Casa do Migrante. Quatro cozinheiras prepararam dez quilos de arroz, sete de batata, 20 de farofa, dois pernis e sete chesters. De sobremesa, foram servidos 200 sorvetes de palito. "É um jantar muito mais completo que o que muitos deles teriam em suas terras", afirma o padre Mário Geremia, vice-diretor da casa e coordenador da Pastoral do Migrante. A mesa foi colocada por um grupo de refugiados e imigrantes. "Eles precisam se sentir em casa aqui e, por conseqüência, cuidar do espaço como se estivessem em suas casas." O padre acredita que organizar uma ceia de Natal é uma forma de mostrar a eles que estão acolhidos, protegidos e entre amigos. O nepalês Kamal Galltam adorou a comida. Com um inglês limitado, definiu: "Good". Galltam chegou ao Brasil há um ano. Ele conta que perdeu sua casa no Nepal em 2007, quando uma avalanche atingiu sua residência e matou seu pai e sua mãe. Veio para o País ilegalmente, no porão de um navio. Quando chegou aqui, viveu nas ruas de São Paulo, sem dinheiro, sem se alimentar e sem falar português. Policiais militares o encontraram nessas condições e o levaram para a Casa do Migrante. Desnutrido, ele ficou dois meses se alimentando só de leite. Hoje, fala que sente fortes dores de cabeça sempre que tem fome. Na mesa, ao lado dos colegas refugiados, Galltam comeu dois pratos cheios de chester, arroz e farofa. E mesmo sem falar o idioma dos companheiros, abraçava a todos, desejando feliz Natal.

"Aqui é uma Torre de Babel. Com uma diferença: apesar da barreira lingüística, todos se entendem", define o padre Geremia. "Eles têm a instituição como a própria casa", afirma a assistente social Márcia Lourdes de Araujo, que trabalha ali com outros 30 funcionários das mais diversas áreas. "Por isso, criam fortes vínculos com outros moradores e com os funcionários. A assistente social se torna a mãe, o porteiro é o irmão, o colega de quarto vira o melhor amigo..."

VIDAS CRUZADAS

Nascida na Eritréia, Rahwa Micael, de 28 anos, está no Brasil há um ano - com o filho Natan, de 2 anos. Ela era operadora de rádio das Forças Armadas de seu país, mas desertou e foi trabalhar como garçonete no vizinho Sudão. "Foram me procurar na casa dos meus pais e, como eles não sabiam onde eu estava, acabaram prendendo-os", narra. Do Sudão, acabou conseguindo uma passagem para o Brasil. "Tenho saudades de meus pais e de meu marido, que está refugiado no Egito", conta, logo após utilizar o orelhão instalado na Casa do Migrante.

O ganense Eric Nawike, de 19 anos, ainda não conhece todos da Casa, onde chegou poucos dias atrás. Seu pai foi morto na guerra civil. Ele decidiu fugir do País para não ter o mesmo destino. "Entrei escondido em um navio. Não sabia nem para onde ia", revela. "Foram duas semanas a bordo, como clandestino." Em Santos, onde desembarcou, mendigou dinheiro para custear a passagem de ônibus até São Paulo. Seu sonho é conseguir um emprego - em Gana, Nawike era carpinteiro. "Do Brasil eu só sabia duas coisas: que é a terra do futebol e que tem muitos católicos", admite ele, que segue o catolicismo. Também de Gana, Inusah Abubakar, de 29 anos, chegou ao Brasil há dois meses. "Vim para prolongar minha vida", resume - ele, assim como o compatriota, perdeu o pai na guerra civil. Lá, sua família tem uma propriedade rural com gado. "Venderam algumas vacas para me pagar a passagem de avião. Se tivéssemos dinheiro, viria a família toda."

Antonio Roldan Gomez, de 31 anos, veio de Cuba. "Sou de partido de oposição ao governo", justifica-se. Preso político, conseguiu fugir e estabeleceu-se no Paraguai. Depois, passou um ano escondido em Foz do Iguaçu (PR), até vir embora para São Paulo, de carona, há um mês. "Não vejo meu filho pequeno, minha mulher e meus pais há quatro anos", reclama. "Não posso ir para Cuba, senão, acabo preso. E eles não autorizam que minha família saia de lá." E completa: "Se um dia puder, trago a família toda e viverei no Brasil o resto de minha vida."

De acordo com o Acnur, a maioria dos mais de 4,2 mil refugiados de 75 nacionalidades que estão no País veio da África. Em segundo lugar está a América do Sul. O maior grupo de refugiados é o de angolanos: 1.688 estão abrigados aqui. Depois vêm os colombianos (598), seguidos dos congolenses (392). Cerca de metade dos refugiados no Brasil está no Estado de São Paulo.

"Eles fogem principalmente de nações em estado de guerra civil, escolhem vir para cá porque é um país receptivo e com fronteiras frágeis e chegam com uma mão na frente e outra atrás", explica o filósofo e jurista Guilherme Assis de Almeida, coordenador do Comitê Estadual para Refugiados de São Paulo, que reúne secretarias de Estado e entidades assistenciais do setor. "E são felizes aqui pelo fato de não sofrerem ameaças constantes e não correrem risco de morte como em suas terras. Então, a meu ver, acabam passando um fim de ano muito mais alegre."