PRAZER OU PERFEIÇÃO?
Em síntese: A vida cristã não pode dispensar a renúncia e a mortificação, visto que dentro da natureza humana existem tendências desregradas, as quais não se harmonizam com o ideal que a razão e a fé concebem. É necessário, pois, vencer ou extirpar a desordem interior. Isto se pode obter mediante a aceitação paciente e amorosa das tribulações desta vida, que a Providência Divina sabiamente dispensa aos homens; mas requer-se, igualmente, que o cristão (com a graça divina) saiba empreender renúncias espontâneas até mesmo a coisas lícitas (mortificações ou penitências), pois estes exercícios fortalecem a vontade do homem e a habilitam a resistir mais tenazmente às tentações e más inclinações.
Os exercícios de penitência não são fins, mas são meios. São meios que outrora assumiam características hoje talvez menos praticáveis (severos jejuns, longas vigílias noturnas, peregrinações a pé...); mas, como quer que seja, hão de ser exercícios significativos e eficazes, aptos a corroborar a vontade na demanda da virtude e na fuga do pecado. - Ascese significa originariamente o treinamento que o atleta espontaneamente empreendia (mesmo sem ter adversário) para que, no dia da competição, pudesse estar adestrado e vencer o páreo. Sem treinamento prévio e habitual, não pode haver esperança de vitória no estádio. Assim também, sem ascese ou penitência não pode haver progresso na vida espiritual do cristão.
Tendo em vista as condições de vida dos homens de nossos tempos, a Igreja reformulou as suas normas relativas à prática da virtude da penitência. Esta reforma suscitou certa hesitação em muitos fiéis, os quais às vezes passaram a crer que já não se pode nem deve praticar a penitência; esta ficaria reservada para certas vocações especiais na Igreja ou estaria ligada a tipos de cultura que hoje não mais existem.
Ora estas concepções têm graves conseqüências na vida cristã... Na verdade, as normas da Igreja são claras e aptas a promover a santificação dos fiéis que lhes queiram dar atenção. Eis porque, neste artigo, consideraremos a Constituição Apostólica Paenitemini de Paulo VI, emanada logo após o Concílio do Vaticano II (17/02/66) e assumida pelo atual Código de Direito Canônico, além de alguns documentos congêneres da Igreja que orientam o povo de Deus em matéria penitencial. Para facilitar a exposição do assunto, procederemos por perguntas e respostas.
1. A doutrina da Igreja
P. Afinal que se entende por penitência?
R. Responde o S. Padre Paulo VI no seu sermão de Quarta-feira de Cinzas de 1967:
A penitência é um corretivo da nossa maneira de viver. Bem o sabemos: nossa natureza não é perfeita. Não funciona bem. Traz em si profunda desordem interna, à qual se deve dar remédio. Eis por que todos quantos entoam a apologia da substancial bondade da vida humana, são profetas de ilusões e, muitas vezes, de desilusões, pois nossa vida, em seu desenvolvimento e em seu funcionamento, abandonada a si própria, sem esses corretivos e sem tal disciplina que redimensionam ... a expressão de toda a nossa atividade, a vida não seria boa e, por isto, não seria nem mesmo realmente feliz.
Como se vê, penitência vem a ser a purificação e o burilamento da natureza humana desregrada incoerente. Quem não aceita essa disciplina e diz Sim a todos os seus impulsos, não se comporta à altura de sua vocação de filho de Deus, conseqüentemente não pode ser feliz, pois é constantemente humilhado e traído por seus afetos desregrados, como nota o Apóstolo.
Não consigo entender o que faço, pois não pratico o que quero e faço o que detesto... O querer o bem está ao meu alcance, porém, o praticá-lo... Eu me comprazo na lei de Deus segundo o homem interior, mas percebo outra lei nos meus membros, que peleja contra a lei da minha razão e me acorrenta à lei do pecado, que existe em meus membros. Infeliz de mim !
P. - Em que consiste a penitência?
Responde Paulo VI no mesmo sermão:
Se perguntássemos aos estudiosos em que é consiste, ouviríamos responder que o primeiro elemento é a metanóia, isto é uma mudança interior. Que é mais fácil: mudança interior ou mudança exterior? É mais fácil, por exemplo, renunciar a alguma coisa que de fora cerca a nossa vida ou transformar o coração, nossos pensamentos, instintos, idéias, aquele tesouro de interioridade que todos obstinadamente guardam no íntimo, dizendo: "Eu sou assim; são estes os meus princípios, o meu modo de pensar, a minha educação e - a grande palavra - a minha personalidade?"
O apelo à metanóia ou à mudança da mente, conversão interior, está na primeira pregação de Jesus: "O Reino de Deus está próximo. Metanoeite (convertei-vos) e crede no Evangelho" (Mc 1,15). É, pois, no íntimo de cada um de nós que começa a tarefa de purificação; o comportamento exterior decorrerá do nosso modo de pensar e de amar. A metanóia é algo de mais exigente e difícil do que doar os bens que nos são extrínsecos (dinheiro, vestes, comida...); alguém pode praticar muitas obras de caridade sem ter realizado uma profunda e séria mudança interior.
Continua o S. Padre:
A Igreja, pronta e solicitamente, nos admoesta: é para a metanóia que deves dirigir a tua atenção e os teus esforços. É necessário deveras renovar o espírito. A penitência não significa um regresso na vida e na pedagogia moderna; realiza, antes, um progresso, visto que torna o homem mais interior, e é mais exigente quanto a tornar a personalidade tal qual deve ser: cristã. Importa morrer interiormente, se queremos renascer. É necessário ter a coragem da acusação de si e não dos outros. Devemos reconhecer plenamente: sou fraco, sou ilógico, fui mau e cometi a falta que devo deplorar na consciência dizendo sinceramente
mea culpa".
Por conseguinte, a penitência nada tem que ver com masoquismo ou morbidez psíquica; ao contrário, é a atitude heróica e magnânima de quem deseja libertar sua personalidade de qualquer forma de escravidão interior. Dizer Pequei e tirar daí as conseqüências é muito mais nobre e belo do que pôr máscaras que me façam passar por algo que não sou.
P. - A penitência é apenas interior ou espiritual?
R. - Em tempo algum pode a verdadeira penitência prescindir de uma ascese também física. Com efeito; todo o nosso ser, alma e corpo... deve participar ativamente deste ato religioso, com que a criatura reconhece a santidade e majestade divina. A necessidade da mortificação do corpo aparece claramente se se considera a fragilidade da nossa natureza, na qual, após o pecado de Adão, a carne o espírito têm desejos contrários entre si. tal exercício de mortificação do corpo - bem longe de qualquer forma de estoicismo - não implica uma condenação da carne, carne que o Filho de Deus se dignou de assumir; antes, a mortificação visa à libertação do homem, que, em razão da concupiscência, freqüentemente se acha como que agrilhoado pela parte sensitiva do seu ser; através do jejum corporal, o homem readquire vigor, e o ferimento infligido pela intemperança à dignidade da nossa natureza é curado pela medicina de uma salutar abstinência. (Const. Paenitemini nº 20).
Na verdade, somos psicossomáticos, de modo que tudo o que é autenticamente humano se traduz sempre em expressões corpóreas e sensíveis. Daí a necessidade de que a conversão interior assuma formas exteriores; o próprio Deus se encarrega de nos enviar ocasiões de renúncia corpórea (moléstias físicas, flagelos naturais, penúria material...), mas, como se dirá mais adiante, é oportuno que o próprio cristão empreenda espontaneamente exercícios de penitência física, como o jejum, a abstinência, a vigília noturna... pois tais práticas treinam e fortalecem a vontade, habilitando-a a dizer Sim ou Não decididos no momento da tentação ou de uma encruzilhada.
Sabemos que o jogador de futebol treina seus músculos, mesmo que não tenha adversário, para poder jogar em competição no dia previsto; se ele não treina espontaneamente, pode perder a esperança de vencer na disputa do torneio. Assim também o soldado faz exercícios de tiro, de marcha, de acampamento mesmo que não esteja em guerra, porque, se não os praticar, não poderá enfrentar o adversário em campo de batalha. - Ora o cristão é um atleta e um soldado de Cristo (cf.: 9,24- 27; 2Tm 2,3-5); por isto também deve treinar espontaneamente a sua vontade, com a graça de Deus, dizendo Não (a um prazer supérfluo) quando lhe seria lícito dizer Sim, a fim de fortalecer a vontade, adestrando-a a resistir aos assaltos das tentações.
Os antigos cristãos realizaram a ascese (tal é o nome grego desse treinamento) com grande coragem, entregando-se a prolongadas práticas de jejum e vigílias. Em nossos dias, as condições gerais de saúde não permitem ir tão longe, pois é necessário ter forças físicas e psíquicas capazes de enfrentar o desgaste do trabalho e dos incômodos de cada dia. Todavia nem por isto está abolida a penitência na Igreja (nem o poderia estar). Eis o que observa a Constituição
Paenitemini: O caráter preeminentemente interior da penitência não exclui nem atenua a prática exterior de tal virtude, antes evoca com particular urgência a necessidade desta, e induz a Igreja - sempre atenta aos sinais dos tempos - a buscar, além da abstinência e do jejum, expressões novas, mais aptas a realizar, segundo a índole das diversas épocas, o próprio fim da penitência" (nº 18).
Assim quem não pode jejuar rigorosamente, faça um jejum mitigado; abstenha-se de alimentos supérfluos; adie a hora de satisfazer a justos desejos; reze um pouco mais no começo ou no fim do dia.
P. - A penitência assim entendida constituiria uma entre outras correntes de vida cristã? Seria algo deixado à escolha de cada um?
R. - Não. A Constituição é muito enfática a tal propósito: "Por lei divina, todos os fiéis são obrigados a fazer penitência" (nº 35 Parag. 1º).
Por lei divina... Isto quer dizer, que se trata de um preceito do próprio Deus.
Com efeito; somos todos chamados, antes do mais, a ver Deus face-a-face; esta é a razão pela qual fomos criados. Devemos, pois, preparar-nos a esse encontro final e supremo com o Senhor Deus. Ora ninguém pode ver a Deus face-a-face se traz em si resquícios de pecado (Deus é três vezes santo; cf. Is 6,3). Daí o imperativo - decorrente da nossa vocação mais fundamental - de nos corrigirmos ou de nos libertarmos das sombras do pecado para poder ver a Deus. E - notemos bem - a ocasião normal de realizarmos essa purificação é a vida presente, e não o purgatório póstumo (este é uma concessão extraordinária de Deus feita à fragilidade das criaturas).
Todos os fiéis... - Por conseguinte, clérigos, Religiosos ou leigos, todos, sem exceção, estão obrigados á prática da penitência. Não há vida cristã que não seja penitente; seria despropositado julgar que no século XX, tão marcado pelo humanismo, se possa pensar num ideal de vida cristã isento de penitência. O que pode mudar, são as formas de mortificação, e não a realidade desta.
P. - Como satisfazer ao preceito divino da penitência ?
R. - Eis a resposta da Constituição Paenitemini:
A Igreja convida todos a fazerem acompanhar a conversão interior do espírito com o exercício voluntário de atos exteriores de penitência:
a) Insiste, antes de tudo, em que exerça a virtude da penitência na fidelidade perseverante aos deveres do próprio estado, na aceitação das dificuldades provenientes do próprio trabalho e da convivência humana, na paciente suportação das provações da vida terrena e da profunda insegurança que a permeia.
b) Aqueles membros da Igreja que são atingidos pelas enfermidades, pelas doenças, pela pobreza, pela desventura, ou que são perseguidos por amor da justiça, são convidados a unir suas dores ao sofrimento de Cristo, de modo a poderem não somente satisfazer mais intensamente o preceito da penitência, mas também obter para seus irmãos a vida da graça e para si mesmos aquela bem-aventurança que no Evangelho é prometida aos que sofrem (nºs 23-25)
Ao abordar o modo de fazer penitência, verifica-se que a Igreja aponta, em primeiro lugar, a aceitação generosa da dureza da vida cotidiana, da qual ninguém está isento (trabalho, convívio com o próximo, doenças, pobreza...). A Providência Divina se encarrega de oferecer-nos tais oportunidades de santificação. Importa, pois, aceitá-las em atitude meramente "resignada e cabisbaixa", mas com o coração dilatado, porque se trata de graças de Deus... O texto indica dois tipos de fecundidade de tais provações:
1) Configuram o paciente a Cristo, dando-lhe o penhor de participação mais íntima na Páscoa do Senhor; quem padece com Cristo, ressuscitará e triunfará com Ele.
2) Tornam o cristão corredentor com Cristo ("obtém para seus irmãos a vida da graça", diz a Constituição); habilitam-no a atender a irmãos afastados da vida reta, imersos no pecado e impermeáveis à Palavra de Deus; não falando, mas configurando-se a Cristo Crucificado, o cristão pode ser missionário junto a essas pessoas; sabemos que a Providência Divina quer salvar a uns mediante outros, servindo-se especialmente da rede de vasos comunicantes que é a comunhão dos Santos.
Acrescenta o texto da Constituição:
Afora as renúncias impostas pelo peso da vida cotidiana, a Igreja convida todos os cristãos indistintamente a corresponderem ao preceito divino da penitência por atos voluntários. (nº 27).
Tais atos voluntários ou espontâneos hão de ser programados por cada fiel de acordo com o seu quadro próprio de vida espiritual: cada qual deve fazer o diagnóstico do seu relacionamento com Deus e o próximo; deve colocar o dedo em suas chagas ou em seus pontos nevrálgicos e procurar conseqüentemente o remédio adequado ou o antídoto: a inclinação ao abuso da palavra exigirá mais rigorosa prática do silêncio, a tendência à impaciência suscitará especial atenção ao próximo, a intemperança levará a abstinência em pontos definidos, etc. (No plano da saúde física, qualquer dor ou sintoma de desequilíbrio provoca logo a procura de diagnóstico e do tratamento adequado. - Somente na vida espiritual é que haverá displicência? Além do mais, o jejum, a sobriedade, a vigília noturna, a privação de prazeres (especialmente quando isto redunda em ajuda ao próximo) são sempre recomendáveis, qualquer que seja a problemática pessoal de cada cristão. Diz o texto da Constituição:
Conservando - onde quer que ele possa ser oportunamente mantido - o costume (observado por tantos séculos com normas canônicas) de exercer a penitência mediante a abstinência de carne e jejum, a Igreja tenciona corroborar também, com suas prescrições, os outros modos de fazer penitência (nº 32).
P. - No plano estritamente jurídico, quais são as normas da Igreja atinentes à penitência?
R. - A Constituição Paenitemini responde nos seguintes termos (que foram confirmados pelo Código de Direito Canônico):
"37º - O tempo da Quaresma conserva seu caráter penitencial.
38º - Os dias de penitência a ser obrigatoriamente observados em toda a Igreja são todas as sextas- feiras do ano e a quarta-feira de Cinzas.
39º - Salvas as dispensas previstas pelo Direito, deve-se observar abstinência em todas as sextas- feiras do ano que não caiam em festa de preceito, ao passo que a abstinência e o jejum se observarão na quarta-feira de Cinzas e na sexta-feira da Paixão e Morte do Senhor.
40º - A lei da abstinência proíbe o uso de carne, mas não o uso de ovos, de laticínios e de qualquer condimento mesmo de gordura animal.
41º - A Lei do jejum obriga a fazer uma única refeição durante o dia, mas não proíbe tomar um pouco de alimento pela manhã e à noite, atendo-se - no que respeita a quantidade e a qualidade - aos costumes locais aprovados.
42º - À lei de abstinência estão obrigados os que completarem quatorze anos. À lei do jejum estão obrigados todos os fiéis, dos vinte e um anos completos aos sessenta começados.
43º - No tocante aos de idade inferior, apliquem-se os pastores de almas e os pais, com particular cuidado, a educá-los no verdadeiro sentido da penitência.
No Brasil, a Conferência Nacional dos Bispos, usando de faculdade concedida pela Santa Sé e tendo em vista as circunstâncias de vida da população local, houve por bem determinar:
Nas sextas-feiras do ano (inclusive as da Quaresma, excetuada a sexta-feira Santa) fica a abstinência comutada em outras formas de penitência, principalmente em obras de caridade e exercícios de piedade.
2. Conclusão
De quanto foi explanado na leitura dos documentos da Igreja, podemos reter o seguinte:
1) A penitência - corretivo da nossa vida - é inerente e obrigatória à existência do cristão. Não há vocação cristã que não inclua a prática da penitência, pois somos todos chamados a ver a Deus face-a-face, o que não é possível a quem traga tendências desordenadas.
2) Embora a penitência seja, antes do mais, conversão interior, ela não dispensa expressões corpóreas, dado que o seu humano só se realiza plenamente nesta vida dentro de formas corpóreas.
3) Dessas maneiras corpóreas de fazer penitência, muitas nos são impostas pela Providência Divina, que assim nos estimula a fazer o que a nossa natureza lerda não teria coragem de praticar (infelizmente, porém, nem sempre o cristão está alerta para tais "visitas do Senhor" e fecha-se a elas). Todavia a Igreja julga necessário que cada cristão empreenda obras espontâneas de penitência; a própria Igreja, aliás, impõe levíssima prática de jejum e abstinência e deixa à consciência de cada um fazer o diagnóstico de sua vida espiritual a fim de aplicar-lhe os remédios necessários. Este deve ser pessoal - que é uma lei de vida - deve estar bem presente ao espírito de cada fiel, e merecerá ser levado muito a sério, pois se trata da Grande Tarefa da vida cristã (preparar a veste nupcial para a ceia da vida eterna).
4) Neste contexto, caso se pergunte se a vida do cristão leigo no mundo é vida de penitência, compreende-se que não ha outra resposta senão a positiva. Quando mais o cristão queira viver a "conversão dos seus costumes", tanto mais há de se empenhar por praticar a morte ao velho homem, sem a qual é impossível a formação da nova criatura ou do Cristo Jesus em nós. Se os documentos jurídicos atualmente pouco falam da penitência, não deixa de ser imperiosa a necessidade de purificação interior, mediante práticas adequadas, que cada irmão e irmã devem assumir em consciência diante de Deus.
(FONTE – PERGUNTE E RESPONDEREMOS
– AGOSTO/1988)