F Formação

7. O pregador e a “Cidade de Deus”.

(Com base em: Carlo Maria MARTINI. El presbítero como comunicador.
Madrid: PPC Editorial y distribuidora, 1996, 199 p.)

- A “Cidade de Deus” é o nome de uma das mais importantes obras de Santo Agostinho, e, segundo Martini, a mais aconselhável das grandes obras de filosofia política para ajudar a compreender a desconcertante sociedade atual.

- A Cidade de Deus, para Agostinho, é uma magnitude que nasce na história e desemboca na eternidade. Essa dupla procedência e finalidade nos dão pé para falar de dois aspectos da pregação: os temas sociais e políticos (o trabalho, a fome, a guerra, o desenvolvimento, a paz, etc.) e os temas escatológicos (céu, inferno, purgatório, salvação e condenação...).

- É evidente que estas duas temáticas se aprensentam como realidades em tensão: se enfatizo demasiadamente os temas sociais e políticos, motivado pelos tremendos problemas dos pobres, das injustiças, dos países subdesenvolvidos, corro o risco de cair numa visão horizontalista, perdendo de vista as realidades eternas; se enfatizo as realidades eternas, corro o risco de cair em abstrações, em espiritualismo, em uma pregação intimista.

- Mas, não há dúvida de que entre as duas realidades há uma unidade. A solução não está, portanto, em dosificar a pregação entre as duas realidades, falar um pouco de uma e depois da outra, mas está em que no coração do pregador haja uma visão global do projeto de salvação, ou seja, que haja uma panorâmica ampla e orgânica que mova o homem dando-lhe clareza e permitindo-lhe colocar-se a si mesmo e à história dentro de um marco aberto ao futuro.

- A relação do pregador com os temas sociais, político e econômicos pode dar-se em dois níveis:

- Ético: é a localização dos problemas concretos de todas as classes sociais em ordem ao bem comum (aqui entra a doutrina social da Igreja, a ação social e político dos católicos: ACO, JUC. JEC...).

- Profético: considera os grandes objetivos dessa ação no presente e no futuro, e percebe o dinamismo histórico, passado e presente, dentro do marco de uma visão cristã.

- Ocupar-nos-emos do nível profético, porque é ele que proporciona ao pregador motivação e força interior, ajudando-o a agir com discernimento e valentia inclusive no âmbito das intervenções práticas e de caráter ético, e também porque é ele que permite passar do âmbito do temporal para o eterno sem a impressão de saltar de uma parte à outra.

- Na Segunda Carta aos Coríntios Paulo fala claramente dessa tensão entre o presente e o futuro, entre a história e a eternidade: “Pois nossas tribulações momentâneas são leves em relação ao peso eterno de glória que elas nos preparam até o excesso. Não olhamos para as coisas que se vêem, mas para as que não se vêem; pois o que se vê é transitório, mas o que não se vê é eterno. Sabemos, com efeito, que, se a nossa morada terrestre, esta tenda, for destruída, teremos no céu um edifício, obra de Deus, morada eterna, não feita por mãos humanas.Tanto assim que gememos pelo desejo ardente de revestir por cima da nossa morada terrestre a nossa habitação celeste” (2Cor 4,17-5,2).

- Fala-se aqui claramente de uma condição plena, mais perfeita, da humanidade, pela qual ansiamos, mas essaplenitude tem um corpo, uma morada, que tem algumas analogias com este corpo e com esta morada que agora experimentamos. As duas realidades estão relacionadas.

- Em Romanos 8,18-25 Paulo fala da mesma coisa de forma bem parecida: “Penso, com efeito, que os sofrimentos do tempo presente não têm proporção com a glória que deverá revelar-se em nós. Pois a criação em expectativa anseia pela revelação dos filhos de Deus. De fato, a criação foi submetida à vaidade — não por seu querer, mas por vontade daquele que a submeteu — na esperança de ela também ser libertada da escravidão da corrupção para entrar na liberdade da glória dos filhos de Deus. Pois sabemos que a criação inteira geme e sofre as dores de parto até o presente. E não somente ela. Mas também nós, que temos as primícias do Espírito, gememos interiormente, suspirando pela redenção do nosso corpo. Pois nossa salvação é objeto de esperança; e ver o que se espera não é esperar. Acaso alguém espera o que vê? E se esperamos o que não vemos, é na perseverança que o aguardamos” (Rom 8,18-25).

- Paulo fala de uma tensão espiritual, uma relação entre os gemidos do Espírito e os gemidos da história. Seguindo estes textos de Paulo, como também o de 1Coríntios 15, e especialmente o livro do Apocalipse de São João, devemos perguntar-nos pelo sentido positivo e ao mesmo tempo dramático da história, tal como a vê o cristão.

- Podemos partir de uma constatação, hoje muito mais de ser feita que na época de Paulo, seguindo, por exemplo, a João Paulo II na Redemptor hominis e Dominum et vivificantem: a história humana tende para uma unidade. Os grandes problemas econômicos (fome, subdesenvolvimento, energia nuclear...) não se resolvem sem interdependência.

- Outro sinal dos tempos atuais é a exigência, que sentem especialmente os jovens, de superar toda barreira, deeliminar as divisões criadas pelas diferenças de raça, língua e cultura (sexo??? querem estar a gosto em todas as partes).

- O Vaticano II diz que tal unidade tem seu sinal e instrumento privilegiado na Igreja, ou seja, a Igreja põe um selo de fé e de eternidade nesta tensão que o ser humano sente para a unidade.

- A unidade histórica para a qual a humanidade caminha, apesar das múltiplas agonias e em meio a acontecimentos incertos, é uma sombra da Jerusalém celeste.

- Na construção desta cidade, sombra da Jerusalém celeste, atuam em unidade o desejo do ser humano e a caridade como gemido do Espírito. Tudo o que se faz no âmbito cívico e social em favor da unidade é desvelado, purificado e sustentado, em suas tensões mais profundas, pela caridade, que é a força que mantém unida a humanidade (falar de minha experiência no Vale, parceria com outras entidades, o específico oferecido da caridade, unidade entre diferentes para não cair nos mesmos moldes de competição...).

- Um segundo princípio ou constatação que se pode fazer a partir dos textos bíblicos é que a unidade é conflitiva, se vê continuamente atacada, posta em perigo, é instável, frágil, está submetida a provas dramáticas, não avança tranquilamente e sem tropeços, mas, ao contrário, corre o risco de cair numa grande confusão?

- Por que se se percebe a unidade como um grande desejo, na hora de tentar realizá-la há divisões de todo tipo que a devoram em sua mesma raíz? Por que toda vez que o mundo tende para a unidade é catapultado de novo para a divisão?

- Não há como entender essa realidade a não a ser a partir da doutrina da igreja sobre os espíritos do mal. Embora não devamos falar muito do diabo, para não cair em más interpretações, é necessário nomeá-lo aqui. Seu nome significa “aquele que tende a dividir”, e assim ele expressa toda uma “inteligência do mal” que tende a separar, a dividir, a enfrentar.

- Desta forma, é necessário compreender a dramática realidade da oposição à unidade da família humana e suas manifestações – guerras, violências, atropelos, abusos, genocídeos, etc – como um componente espiritual da história. Assim também, nossa fé só pode ser vivida imersa em permanentes conflitos, em luta dramática (essa é a realidade, não há como fugir a ela; pretender uma fé tranquila, sem conflitos, é não compreender a realidade da fé cristã).

- O terceiro princípio é a atração do Espírito. Tudo que nos faz caminhar para a unidade e a paz – intercâmbio entre os povos, comunhão de bens, ajudas mútuas entre os países, luta contra a fome, desarmamento – se inscreve no caminho salvífico movido e atraído pelo Espírito (falar da minha conversa com o senhora no aeroporto de Lisboa, da conversa em casa sobre o tratamento a haitianos e bolivianos no Brasil, etc, a parceria com a ONG Serra da Moeda).

- Santo agostinho via assim a Cidade de Deus, como uma cidade que construimos agora, em meio a constantes conflitos.

- O quarto princípio é a complementariedade entre a recepção desta Cidade celeste como dom e a construção dela como tarefa nossa. A Jerusalém celeste “desce do alto”, mas ao mesmo tempo vai sendo construída em meio a terríveis lutas.

- É assim que a unidade do gênero humano se realiza de maneira mais alta na cruz de Cristo, momento da máxima obscuridade e oposição, da máxima raiva desagregadora e divisiva que se desencadeia contra todo intento de unidade real dos corações e das vidas.

- Fora da revelação e do mistério da cruz não se pode chegar a uma verdadeira purificação e conquista da paz, num contexto de inexorável conflitividade. É por isso que o Budismo, não obstante sua elevadíssima espiritualidade (provavelmente o maior intento de expressar a disciplina humana da purificação), não consegue resolver satisfatoriamente o problema da dor e do sofrimento, da conflitividade humana. Fora da cruz, o drama da conflitividade e da dor se resolve somente em parte.

- Conclusão:

- O pregador deve contemplar em seu interior essa visão profética, e cultivá-la, e inspirar-se nela na hora de tratar os temas concretos. Quando fala de temas sociais e políticos, deve unificá-los em seu coração mediante uma visão profética do destino eterno do homem, sem perder de vista o kerigma para não cair, de fato, na sociologia.

- O pregador deve evitar os compartimentos estanques, as alienações, as divisões internas

- É isso que a linguagem dos textos escatológicos quer nos dizer com a palavra constantemente repetida: “vigiai e orai”. Ou seja, é necessário a reflexão, o discernimento, a oração que tenta compreender os acontecimentos dramáticos que agitam o mundo. Não se trata de se preocupar por antecipar ansiosamente o fim do mundo, mas de viver com sentido dramático o seu desenvolvimento até a volta do Senhor. Não podemos cair na tentação de pensar que Deus abandonou o nosso mundo e que, portanto, essa vida já não tem sentido, ou que cada um busque aquilo que lhe vem, e que talvez estabeçamos apenas algumas normas aceitáveis de convivência (assim às vezes vejo o mundo... pessoas passeando no Inhotim... cada uma tentando viver por si... no conforto e no deleite... sem sonhos e ideiais de comunhão universal. Quando o mundo se universaliza, parece universalizar apenas os interesses egoístas... a mulher no aeroporto de Lisboa).